"Convite para uma chávena de chá de jasmim"


quarta-feira, 31 de outubro de 2007

O impostor inverosímil



Dou-lhe esse nome - Tom Castro - porque sob esse nome o conheceram nas ruas e nas casas de Talcahuano, de Santiago do Chile e de Valparaíso, por volta de 1850, e é justo que o assuma outra vez, agora que regressa a estas terras - pelo menos na qualidade de mero fantasma (...).

O registo de nascimento de Wapping chama-lhe Arthur Orton e regista-o no dia 7 de Junho de 1834. Sabemos que era filho de um carniceiro, que a sua infância conheceu a miséria insípida dos bairros miseráveis de Londres e que sentiu o apelo do mar. O facto não é insólito. Run away to sea, fugir para o mar é a rotura tradicional inglesa da autoridade dos pais, a iniciação heróica. A geografia recomenda-a e até a Escritura (Salmos, 107): Os que se fizeram ao mar nos seus navios, / para comerciarem nas grandes águas, / esses viram as obras do Senhor, e as suas maravilhas no alto mar. (...)


Era um homem de uma tranquila idiotice. Logicamente, teria podido (e devido) morrer de fome, mas a sua confusa jovialidade, o seu permanente sorriso e a sua infinita mansidão atraíram-lhe o favor de uma certa família Castro, cujo nome adoptou. (...)


Em Sidney conheceu um tal Bogle, um criado negro. (...) Tinha a solidez de uma obra de engenharia (...) e a súbita ideia genial. Orton viu-o numa arruinada esquina (...) ao criar alento para enfrentar a imaginária morte. Depois de o ter olhado longamente, ofereceu-lhe o braço e, assombrados, atravessaram os dois a rua inofensiva. Desde esse instante dum entardecer já defunto, um protectorado se estabeleceu: o do negro inseguro e monumental sobre o obeso pateta de Waping. Em Setembro de 1865, ambos leram num diário local um desolado aviso.


Em fins de Abril de 1854 naufragou nas águas do Atlântico o vapor Mermaid, procedente do Rio de Janeiro, com rumo a Liverpoool. Entre os que pereceram estava Roger Charles Tichborne. Lady Tichborne, horrorizada mãe de Roger, recusou-se a acreditar na sua morte e publicou desolados avisos nos jornais de mais vasta circulação. Um desses avisos caiu nas brandas mãos fúnebres de Bogle, que concebeu um plano genial.


Tichborne era um esbelto cavalheiro de ar concentrado, de traços agudos, tez morena, o cabelo grosso e lasso, os olhos vivos e a palavra de uma exactidão já incómoda; Orton era um parolo sem maneiras, de vasto abdómen, traços de uma infinita inexpressividade, cútis a atirar para sardenta, cabelo castanho encaracolado, olhos dorminhocos e a conversação ausente ou confusa. Bogle inventou que o primeiro dever de Orton era embarcar no primeiro vapor para a Europa e satisfazer a esperança de Lady Tichborne, declarando ser seu filho.


(...) Apresentou um Tichborne fofo, com um sorriso amável de imbecil, cabelo castanho e uma irrecuperável ignorância do idioma francês. Bogle sabia que um fac-símile perfeito do ansiado Roger Charles Tichborne era de impossível obtenção. Sabia também que todas as similitudes conseguidas não fariam mais do que destacar certas diferenças inevitáveis. Renunciou, portanto, a todas as parecenças. Intuiu que a enorme inépcia da pretensão seria uma prova convincente de não se tratar de uma fraude, que descobriria desse modo flagrante os traços mais simples da convicção. Não deve esquecer-se tão-pouco a colaboração omnipotente do tempo: catorze anos de hemisfério austral e de azar podem modificar um homem.


Em 16 de Janeiro de 1867 Roger Charles Tichborne anunciou-se (...) a mãe reconheceu o filho pródigo e abriu-lhe o seu abraço. (...) Lady Tichborne morreu em 1870 e os parentes apresentaram queixa contra Artur Orton por usurpação do estado civil. (...) Outras denúncias se seguiram (...)

Cento e noventa dias durou o processo. (...) Bogle foi implorar uma terceira iluminação pelas ruas de Londres. Não saberemos nunca se a encontrou (...) apanhou-o o terrível veículo que desde o fundo dos anos o perseguia. (...) Os cascos do cavalo famélico partiram-lhe o crânio.


Tom Castro era o fantasma de Tichborne, mas um pobre fantasma habitado pelo génio de Bogle. Quando lhe disseram que este morrera, aniquilou-se. Continuou a mentir mas com um entusiasmo escasso e contradições disparatadas. Era fácil prever o fim.


Em 27 de Fevereiro de 1874, Artur Orton, por alcunha Tom Castro, foi condenado a catorze ans de trabalhos forçados. Na prisão tornou-se querido; era o seu ofício. O seu comportamento exemplar valeu-lhe uma amnistia de quatro anos. Quando essa hospitalidade final o deixou - a da prisão - percorreu as ruas e os centros do Reino Unido, pronunciando pequenas conferências em que declarava a sua inocência ou afirmava a sua culpa. A sua modéstia e o anseio de agradar eram tão duradouros que em muitas noites começou por defender-se e acabou por confessar, sempre de acordo com as inclinações do público.

Morreu em 2 de Abril de 1898


in História Universal da Infâmia

Jorge Luís Borges


Liebe


Liebe berauscht, sagt man.
Liebe ernüchtert, sagt man.
Liebe läßt klar sehen, sagt man.
Liebe macht blind.
Liebe verdirbt.
Liebe veredelt.
Liebe stärkt.
Liebe schwächt.
Liebe bringt Pein,
und Liebe bringt Glück.
Wo, wer ist jener Sagtman?
Liebe macht gar nichts,
erwidere ich ihm.
Wir machen die Liebe zu dem,
was sie uns wird.

Gottfried Keller

Imagem: Mónica Santos

terça-feira, 30 de outubro de 2007

Soneto de Aniversário


Passem-se dias, horas, meses, anos
Amadureçam as ilusões da vida
Prossiga ela sempre dividida
Entre compensações e desenganos.

Faça-se a carne mais envilecida
Diminuam os bens, cresçam os danos
Vença o ideal de andar caminhos planos
Melhor que levar tudo de vencida.

Queira-se antes ventura que aventura
À medida que a têmpora embranquece
E fica tenra a fibra que era dura.

E eu te direi: amiga minha, esquece...
Que grande é este amor meu de criatura
Que vê envelhecer e não envelhece.

Do Vinicius para a Lia - Vinicius de Moraes (Rio, 1942)
Imagem: Matt Nighswander

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Valsinha


Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar
Olhou-a de um jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar
E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar
E nem deixou-a só num canto, pra seu grande espanto convidou-a pra rodar
Então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar
Com seu vestido decotado, cheirando a guardado de tanto esperar
Depois os dois deram-se os braços como há muito tempo não se ousava dar
E cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar
E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou
E foi tanto felicidade que toda cidade se iluminou
E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não se ouviam mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu

Em paz


Valsinha, uma canção de Chico Buarque de Holanda é dedicada a um movimento social dos anos 70 denominado hippie, o qual pregava a liberdade de acção do indivíduo. Essa prática levava as pessoas a agirem livremente e sem preconceitos no período de repressão do Governo Militar.Normalmente, os seus seguidores viviam em grupos, preconizavam o amor, aboliam a discriminação racial e faziam sexo livremente, isento de condenação.

A alusão que Chico faz ao movimento é personificada na performance de um casal que, “um dia“, muda a sua conduta, tomando um outro rumo na vida. A homenagem a esse evento de vanguarda retrata metaforicamente o lirismo vivido pelos seus integrantes como artifício para
fugir da censura política.


Análise: Prof. José Atanásio da Rocha

Imagem: Mónica Santos

domingo, 28 de outubro de 2007

Chris Jordan - o desperdício transfigurado em composição artística e objecto de reflexão

a b c


d e f


g

Chris Jordan é americano. Mas poderia não o ser..pensam todos aqueles que associam o significante a um significado de altivez política, ganância económica e aridez acultural. Os pré-conceitos e as tipificações são um denominador comum: o passo inicial na formulação de conceitos é precisamente encontrar as características gerais que permitam, apesar da diversidade individual, reconhecer e associar o conceito com o referente. Pergunto-me se a adjectivação acima me permitiria chegar à representação mental de América..mas esse é um outro exercício.

Oriundo de Seattle, Chris Jordan é um artista..outro conceito polémico. Artista, arte e diferentes modos de a exprimir e conceptualizar. O belo pelo belo; a arte enquanto imbuída e reveladora de uma mensagem política; a arte "democrática" e massificada ; a subversão dadaísta ? Qual a fronteira entre subversão e iconoclastia? E nem sequer nomearei o "artista" que recentemente trouxe mais uma acha para esta discussão...ao deixar morrer um cão que havia recolhido nas ruas ...em nome de uma mensagem humanista - homenagem pessoal a uma vítima mortal de um ataque desferido por um cão feroz - ao mesmo tempo que denunciava a hipocrisia de todos aqueles que se indignaram com a morte do animal numa galeria ou "espaço branco". mas não se rebelam contra o número crescente de animais abandonados e entregues à sua sorte. Tenho uma opinião sobre esse senhor...que se prende com a necessidade de protagonismo e o arrivismo pseudo-cultural...a denominação "arte" é um holofote que o próprio regula sobre si.

Afinal ..porquê Chris Jordan? Partindo do denominador comum e do nível limiar de Arte como transfiguradora do real e do conceito do artista como ser balizado por fronteiras espacio-temporais que o influenciarão e, por conseguinte, a sua arte - ou seja começando pelo pré-conceito - vamos construindo níveis mais complexos de significação à medida que diferentes elementos/ materiais nos vão sendo desvelados. Olhando com mais pormenor notamos...


a b c




d e



g

Para os ainda incrédulos, abaixo consta a legenda das imagens
a- 213.00 comprimidos da marca Vicodin: idêntico número de registos anuais de emergência hospitalar por abuso de analgésicos.
b- 60.000 sacos de plástico gastos nos EUA p/ segundo.
c- 11.000 rastos de aviões correspondentes a vôos comerciais nos EUA em períodos de 8 horas.
d- 29.569 armas: idêntico número de vítimas do seu uso em 2004.
e- 106.000 latas de alumínio consumidas em 30 segundos.
f- 8.000.000 de palitos: igual número de árvores abatidas mensalmente e transformadas em papel para catálogos de encomendas.
g- 9.000.000 blocos de letras; idêntico número de crianças nos EUA não abrangidas pela Segurança Social.





170.000 pilhas descartáveis produzidas pela Energizer em 15 minutos!


An American Self Portrait
Actualmente exposta na Paul Kopeikin Gallery em Los Angeles.
Mais informações: www.paulkopeikingallery.com.

A monsieur Vitart

Le soleil est toujours riant,
Depuis qu'il part de l'orient
Pour venir éclairer le monde.
Jusqu'à ce que son char soit descendu dans l'onde
La vapeur des brouillards ne voile point les cieux ;
Tous les matins un vent officieux
En écarte toutes les nues :
Ainsi nos jours ne sont jamais couverts ;
Et, dans le plus fort des hivers,
Nos campagnes sont revêtues
De fleurs et d'arbres toujours verts.

Les ruisseaux respectent leurs rives,
Et leurs naïades fugitives
Sans sortir de leur lit natal,
Errent paisiblement et ne sont point captives
Sous une prison de cristal.
Tous nos oiseaux chantent à l'ordinaire,
Leurs gosiers n'étant point glacés ;
Et n'étant pas forcés
De se cacher ou de se taire,
Ils font l'amour en liberté.
L'hiver comme l'été.

Enfin, lorsque la nuit a déployé ses voiles,
La lune, au visage changeant,
Paraît sur un trône d'argent,
Et tient cercle avec les étoiles,
Le ciel est toujours clair tant que dure son cours,
Et nous avons des nuits plus belles que vos jours.

Jean Racine, A Monsieur Vitart

sábado, 27 de outubro de 2007

Iluminado











Júlio Resende - Porto, 23 de Outubro de 1917 -

"
Na pintura tentei exprimir um acto de fé em defesa da harmonia e se esta atitude foi uma virtude, os resultados o demonstrarão".
"Tudo o que sei aprendi com o meu semelhante, desde o mais humilde ao mais sábio".
"Desde que me reconheci vivo, tenho capacidade de ver e amar e, a partir dos dez, doze anos dei prova disso, através dos desenhos de estórias inventadas que apareceram nas publicações da época. Na minha profissão de professor sempre abracei a de pintor, actividades que me preencheram a totalidade de uma vida."
"Por meritória que seja a análise do crítico, o artista reage a um processo que vem do seu íntimo, e não haverá dois semelhantes. As classificações são parâmetros históricos e temperamentais, mas sempre teorias".
"Vejo e sinto a arte como uma espécie de caminho para um mundo mais fraterno e, essencialmente, como um sinal de vida".

Lamento:"Se fosse hoje não teria oferecido o painel Ribeira Negra à Câmara do Porto, uma vez que a obra permanece há vários anos encaixotada nos armazéns camarários."

Vau de um afluente a necessitar de uma drenagem criptorreica:
"Dado tratar-se de uma obra de grande dimensão será exposta quando houver um local" - o edil actual.

"Ribeira Negra": técnica mista sobre tela com 3 x 40 metros
Segurada em 500 mil euros
Considerada a Guernica portuguesa; representa um marco incontestável da condição social humana.


Exposições: Museu da Alfândega
"Pinturas recentes " - Fundação Júlio Resende
"Evocação dos 10 anos do Lugar do Desenho" - Fundação Júlio Resende

Excertos de entrevistas a O Primeiro de Janeiro e Jornal de Notícias

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Grito



Cedros, abetos,
pinheiros novos.
O que há no tecto
do céu deserto,
além do grito?
Tudo que é nosso.

São os teus olhos
desmesurados,
lagos enormes,
mas concentrados
nos meus sentidos.
Tudo o que é nosso
é excessivo.

E a minha boca,
de tão rasgada,
corre-te o corpo
de pólo a pólo,
desfaz-te o colo
de espádua a espádua,
são os teus olhos,
depois o grito.

Cedros, abetos,
pinheiros novos.
É o regresso.
É no silêncio
de outro extremo
desta cidade
a tua casa.
É no teu quarto
de novo o grito.

E mais nocturna
do que nunca
a envergadura
das nossas asas.
Punhal de vento,
rosa de espuma:
morre o desejo,
nasce a ternura.
Mas que silêncio
na tua casa.

David Mourão Ferreira
Imagem:Popel Coumou

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Mãos - Libertas são



O lançamento anunciado do novo álbum fotográfico de Sebastião Salgado intitulado África e em particular um subtítulo "como o barro espera pelas mãos" trouxe-me à memória As mãos dos Pretos, conto do escritor moçambicano Bernardo Honwana. Nele se ensaiam vertentes explicativas para a “coisa de as palmas das mãos dos pretos serem mais claras”,ilustrativas do espírito colonialista de quem as emite.

No texto, um rapazinho, é confrontado inicialmente com a versão do Senhor Professor, o qual assevera ser " porque ainda há poucos séculos os avós deles andavam com elas apoiadas ao chão, como os bichos do mato”; o Senhor Padre, por sua vez, avança com um "pio" “porque eles, às escondidas, andavam sempre de mãos postas, a rezar”.

Das mulheres, donas de casa e dedicadas "fadas do lar", destaque para a Dona Dores: “Deus fez-lhes as mãos assim mais claras para não sujarem a comida que fazem para os seus patrões ou qualquer outra coisa que lhes mandem fazer e que não deva ficar senão limpa”; e um certo livro informa, mais tarde, “que os pretos têm as mãos assim mais claras por viverem encurvados, sempre a apanhar o algodão branco de Virgínia e de mais não sei onde”.O Senhor Antunes da Coca-Cola ironiza remetendo-nos para os tempos longínquos e míticos da Criação do Mundo...até que a criança recorre à mãe. O seu riso é a denúncia da tacanhez daqueles "espíritos" e, unificadora, contrapõe:

"Deus fez os pretos porque tinha de os haver. Tinha de os haver, meu filho. Ele pensou que realmente tinha de os haver... Depois arrependeu-se de os ter feito porque os outros homens se riam deles e levavam-nos para as casas deles para os pôr a servir como escravos ou pouco mais. Mas como Ele já os não pudesse fazer ficar todos brancos porque os que já se tinham habituado a vê-los pretos reclamariam, fez com que as palmas das mãos deles ficassem exactamente como as palmas das mãos dos outros homens. E sabes por que é que foi? Claro que não sabes e não admira porque muitos e muitos não sabem. Pois olha: foi para mostrar que o que os homens fazem, é apenas obra de homens... Que o que os homens fazem, é feito por mãos iguais, mãos de pessoas que, se tiverem juízo, sabem que antes de serem qualquer outra coisa são homens. Deve ter sido a pensar assim que Ele fez com que as mãos dos pretos fossem iguais às mãos dos homens que dão graças a Deus por não serem pretos."

Em seguida beija as mãos ao seu filho. Satisfeito com a resposta, o garoto afasta-se para brincar, recordando com espanto, o pranto copioso e "imotivado" da sua mãe.
Imagem: Joe Sorren

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Sentimento do Absurdo


Um dos meus livros preferidos e que agora, com outra (matur)idade releio, descobrindo detendo-me em diferentes recessos. Eis excertos do texto introdutório da autoria de Sartre:

" O absurdo não está no homem nem no mundo se os tomarmos separadamente; (...)é unitário com a sua condição humana. (...)É uma uma iluminação desolada que no-lo revela: os gestos de levantar, carro eléctrico, quatro horas de escritório ou de fábrica, refeição, carro eléctrico, quatro horas de trabalho, refeição, sono, e segunda-feira, terça, quarta, quinta, sexta, sábado no mesmo ritmo..e depois, de repente, os cenários desabam e acedemos a uam lucidez sem esperança. Então, se sabemos recusar o socorro enganador das religiões ou das filosofias da existência, temos algumas evidências essenciais: o mundo é um caos, uma divina equivalência que nasce da anarquia; - não há amanhã, visto que se morre..Num universo subitamente privado de ilusões e de luzes o homem sente-se um estrangeiro. Tal exílio é um recurso visto que está privado das recordações de uma pátria perdida ou da esperança de uma terra prometida. É que, com efeito, o homem não é o mundo..Se eu fosse árvore entre a´rvores..esta vida teria um sentido, ou melhor, este problema é que não o teria, porque eu faria parte deste mundo, seria este mundo ao qual agora me oponho com a minha consciência..Esta razão tão irrisória que me opõe a toda a criação.

O homem absurdo não se suicidará: quer viver, sem abdicar nenhuma das suas certezas, sem dia seguinte, sem esperança, sem ilusões e também sem resignação. O homem absurdo afirma-se na revolta. Fixa a morte com uma atenção apaixonada e esta fascinação liberta-o: conhece a divina disponibilidade do condenado à morte . Tudo é permitido visto que Deus não existe e visto que se morre. (...) O presente e a sucessão de presentes perante uma alma sempre consciente é o ideal do homem absurdo. (...) O homem absurdo não explica; descreve.(...) O absurdo é o divórcio, a deslocação. O mais seguro dos mutismos não é calarmo-nos mas falarmos."

Jean-Paul Sartre
Introdução a O estrangeiro, Albert Camus

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Modern Times


The paradox of our time in history is that we have taller buildings but shorter tempers, wider freeways, but narrower viewpoints.
We spend more, but have less; we buy more, but enjoy less.
We have bigger houses and smaller families, more conveniences, but less time.
We have more degrees but less sense, more knowledge, but less judgment, more experts, yet more problems, more medicine, but less wellness.
We drink too much, smoke too much, spend too recklessly, laugh too little, drive too fast, get too angry, stay up too late, get up too tired, read too little, watch TV too much, and pray too seldom.
We have multiplied our possessions, but reduced our values.We talk too much, love too seldom, and hate too often.We've learned how to make a living, but not a life.
We've added years to life not life to years.
We've been all the way to the moon and back, but have trouble crossing the street to meet a new neighbor.
We conquered outer space but not inner space.
We've done larger things, but not better things.
We've cleaned up the air, but polluted the soul.
We've conquered the atom, but not our prejudice.
We write more, but learn less.We plan more, but accomplish less.We've learned to rush, but not to wait.
We build more computers to hold more information, to produce more copies than ever, but we communicate less and less.
These are the times of fast foods and slow digestion, big men and small character, steep profits and shallow relationships.
These are the days of two incomes but more divorce, fancier houses, but broken homes.
These are days of quick trips, disposable diapers, throwaway morality, one night stands, overweight bodies, and pills that do everything from cheer, to quiet, to kill.
It is a time when there is much in the showroom window and nothing in the stockroom.
A time when technology can bring this letter to you, and a time when you can choose either to share this insight, or to just hit delete.
Remember to spend some time with your loved ones, because they are not going to be around forever.
Remember to say a kind word to someone who looks up to you in awe, because that little person soon will grow up and leave your side.
Remember to give a warm hug to the one next to you because that is the only treasure you can give with your heart and it doesn't cost a cent.
Remember to say, "I love you" to your partner and your loved ones, but most of all mean it.
A kiss and an embrace will mend hurt when it comes from deep inside of you.
Remember to hold hands and cherish the moment for someday that person will not be there again.
Give time to love, give time to speak and give time to share the precious thoughts in your mind.

George Carlin
Imagem: Cao Fei

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Sociedade Pop-Psi


A sociedade pós-moderna é a época do deslizar,um tempo em que a res publica já não tem qualquer elo sólido, qualquer ponto de ancoragem emocional estável. (...) Tudo se desliza e se paga numa indiferença descontraída. O narcisismo é indissociável desta tendência histórica para a transferência emocional; (..)não se caracteriza apenas pela auto-absorção hedonista.Tem o seu modelo na psicologização do social. Cada um de nós pretende tornar-se locutor e ser ouvido mas quanto mais os indivíduos se exprimem menos há que dizer. Paradoxo reforçado ainda pelo facto de ninguém se interessar, no fundo, por tal profusão de expressão com a excepção do emissor ou criador.

Numa sociedade aberta, plural, levando em conta os desejos do indivíduo e aumentando a sua liberdade combinatória, a sedução non stop tornou-se o processo geral que tende a regular a vida pós-moderna. Esta, sem imperativo categórico cria um ambiente em que o processo de personalização reduz os quadros rígidos e coercivos.

O culto da espontaneidade e a cultura psi estimulam o indivíduo a ser "mais" ele próprio, a "sentir", a libertar-se dos papéis e "complexos". É a cultura do "feeling" e da emancipação individual alargada a todos os grupos de idade e sexo. O processo de personalização asseptiza o vocabulário como o coração das cidades, os centros comerciais e a morte. O indivídui pós-moderno está ligado à música de manhã à noite como se precisasse de uma desrealização estimulante.

Numa altura em que o crescimento económico se esgota, o desenvolvimento psíquico reveza-o; no momento em que a informação se susbstitui à produção, o consumo de consciência torna-se uma nova bulimia: ioga, psicanálise, dinâmica de grupo. Canalizando as paixões no sentido do eu, promovido à categoria de umbigo do mundo, a terapia psi, gera uma figura inédita de Narciso, identificando doravante este com o homo psychologicus. Narciso obcecado por si próprio não sonha, no seu grande destino de autonomia e de independência.

Narcisismo total em que a palavra de ordem já não é a interpretação mas o silêncio do analista: libertado da palavra do Mestre e do referencial de verdade o analisando é apenas entregue a si próprio numa circularidade regida exclusivamente pela auto-sedução do desejo. Quando o discurso cede à emoção directa, o narcisismo pode cumprir-se em toda a sua radicalidade.

Quanto mais o Eu é investido, feito objecto de atenção e de interpretação, mais a incerteza e a interrogação crescem: o Eu tornou-se um conjunto frouxo.

in A era do vazio de Gilles Lipovetsky

domingo, 21 de outubro de 2007

Dia Nacional/Mundial/Internacional para ..pensar!?!


Chateiam-me sobremaneira, a nível público ou privado,os dias instituídos por decreto para pensar, para nos consciencializarmos do nosso papel na sociedade e para nos lembrarmos dos outros. Recentemente "comemorou-se" - a palavra foi ironicamente escolhida - o dia qualquer coisa de luta contra a pobreza. Em cada blogue que visitava lá me deparava eu com ícones alusivos, posts descritivos, informativos,com estatísticas e testemunhos num tom pesaroso,denunciador, reprovador: "recensões" e dissensões críticas sobre o tema. Lá vinham as imagens de África, Ásia estando a objectiva pré-programada para captar rostos e corpos de mulheres e crianças. Nisto de pobres..que se lixem os homens! O rosto condoído de uma mulher deve perturbar mais a consciência mundial do que um esqueleto ambulante - quando ainda tem forças para o mover - masculino.

Referia-se o caso português, a "evolução" das assimetrias sociais; apelava-se ao compromisso, à participação activa. Quase todos os artigos e comentários que li evidenciavam testemunhos de cidadãos consciencializados e envergonhados com o "status quo", imbuídos de um espírito de entreajuda conducente a uma trabalho activo e empenhado nessa "cosa nostra". Quando o que mais oiço é "não tenho tempo para nada" apraz-me registar que, os que por estas paragens vagueiam, são malabaristas do tempo, pessoas disciplinadas capazes de incorporar todos os seus múltiplos deveres num dia de trabalho..compulsivo e voluntário!

Se o tom de certos posts era incisivamente militante não ficava aquém do dos comentários: compromissos de honra dirigidos ao(s) administrador(es)/autor(es) dos blogues reiterando não só a sua participação real e efectiva levada a cabo diariamente nos seus domínios pessoal e profissional como se endereçavam ainda promissores "mas se mais for preciso..cá estarei".Um mimo este, hein? Ainda me questionei...mas este vai organizar uma actividade com um impacto prático, objectivo e imediato que despoletou no/a visitante um assomo hormonal e irreprimível de solidariedade?

Não li posts sobre os sem-abrigo da zona de residência dessas pessoas; não li sobre a recusa de trabalho ou de espírito de sacrifício de alguns que, convenhamos, dá emprego a vagas de imigração; não li sobre trabalho voluntário em instituições ou em ajuda prestada à família de um vizinho que tem um filho deficiente profundo, uma mulher cuidando do seu marido com Alzheimer necessitada de, além de tempo para si, algo mais sólido e imediato. Li críticas à Declaração do Milénio assinada na ONU em 2000 e à falta de cumprimento dos seus oito princípios estruturantes, sendo que o do combate à pobreza era um dos prioritários, a par do combate a discriminações e à sustentabilidade ambiental. Não li sobre Gisberta, violentamente agredida num parque abandonado a que chamava "lar", tão perto de um hotel de cinco estrelas; não me deparei com encómios à tolerância e à sua garra quando, aconselhada a sair, afirmou tão somente: "Posso estar muito mal, mas continuo a ter a força (de um homem) não vai ser por causa de uns miúdos..." Não li também muitos posts de anuimento quando Gore ganhou o Nobel da Paz - ainda na sequência da declaração das supostas 189 "nações unidas".

Aliás, hoje ligo o computador e fico a saber que Giuliani anda num corropio eufemístico, vulgo "arranjar desculpas" para en/reformar as suas convicções, ou melhor, as suas declarações. Passo a citar: "Giuliani appealed to his audience to look beyond his support for abortion rights and focus on shared values, such as fighting crime and his vow to relentlessly pursue the war on terror". Na sequência do olhar para lá de ... lá vai o desvio de olhar e memória para os direitos das minorias sexuais, étnicas,etc, etc..

Onde está a indigência? Quem são os pobres? E quem são os tristes?

A imagem contém linguagem imprópria a que os americanos são alheios, nada lhes podendo, consequentemente, ser imputado. O texto é em inglês e quanto ao nível/registo de língua ...bem... esse é europeu, como denota a expressão polida que antecede o vernáculo: "Pardon my French".

sábado, 20 de outubro de 2007

O aparato e a aparência


(…)
Arcaica e estratificada a certos níveis, a sociedade portuguesa oferece, por contraste, uma extraordinária mobilidade “psíquica”, ou antes, uma comum disponibilidade para que os indivíduos que a constituam ocupem nela as mais imprevistas funções. No curioso far-west em que nos convertemos – depois de séculos de clausura sociológica – a predisposição crónica do efeito de aparência eclipsa quase por complete a crítica e o contrapeso que a avaliação mais correcta das exigências da realidade e da capacidade para as satisfazer, importa. Em princípiotodo o português que saiba ler e escrever se acha apto para tudo, e o que é mais espantoso é que ninguém se espante com isso.

(…)

É pena que Freud não nos tenha conhecido: teria descoberto, ao menos, no campo da pura vontade de aparecer, um povo em que se exemplifica o sublime triunfo do princípio do prazer sobre o princípio da realidade.Talvez não ficasse tão admirado se conhecesse, mesmo pela rama, uma das menos repressivas educações infantis que existem. Adulação permanente e espectacular da criança-rei (sobretudo o macho), porta aberta para as suas pulsões narcisistas e exibicionistas, ausência de perspectiva social positiva, salvo a que prolonga a afirmação egoísta de si, tais são os mais comuns reflexos da educação portuguesa, defesa natural de mães frustradas nela pelo genérico absentismo e irresponsabilidade paternos. A contrapartida desta realeza traduz-se numa indefinição do espaço humano que nada limita e define senão a vontade oposta. (…) A sociedade portuguesa não é a única que vive sob o modo de uma quase total exterioridade e em obediência ao pendor iresistível de ocupar nela o lugar que implica o mínimo de resistência e o máximo de promoção social segundo a norma do parecer, mas é certamente uma das mais perfeitas no género.

Eduardo Lourenço, in O Labirinto da Saudade, 1978
A 4 de Dezembro doutor "honoris causa" pela Universidade de Bolonha.

Tu és um lindo rapaz


Tu és um lindo rapaz
Vê-se que foste educado
E tens boa apresentação
Conheci-te ainda há pouco
Mas já estou enfastiado
Não falo mais contigo
Nem para saber que horas são

Tu queres sorrir como o Steve McQueen
Falar como o Marlon Brando
E o teu olhar lembra-me o Valentino
Do Fred Astaire queres ter os pés
Cantar como o Sinatra
E eu não chego a saber quem tu és

Tu és um lindo rapaz
Mesmo quando olhas de lado
Para ver se estás a ser notado
Gramo à brava o teu cabelo
É pena estar cheio de laca
Só espero que uma hora ao pé de ti
Não dê ressaca

Tu queres sorrir como o Steve McQueen
Falar como o Marlon Brando
E o teu olhar lembra-me o Valentino
Do Fred Astaire queres ter os pés
Cantar como o Sinatra
E eu não chego a saber quem tu és

Jorge Palma, Tu és um lindo rapaz

Significante, Significado e Referente


A vida não é como os livros, dizem. A vida não é os livros. Porém os livros são acerca de vidas; são o produto de vidas; influenciam vidas. Humm..quanto mais penso no tema, mais semelhanças encontro entre ambos:a limitação do seu tempo físico de vida ainda que perdurem na memória; a sua necessidade de "novos formatos" a fim de não se perder irreversivelmente (nem sempre se consegue); a "escolha" condicionada - umas vezes é escolhida; a carestia (importa SOBREviver e não SUbsistir); o espaço que se partilha umas vezes, ou que pretendemos manter secreto de tão precioso ou ímpar; o seu título (o nome próprios, os comuns, o epitáfio); a capa e a contracapa (solar e lunar das decisões)...

Recentemente - e considerando o aspecto relativo do tempo - socorri-me do dicionário- MA(E)nancial que nunca enjeito - e rumei até à letra H...sim...procurava a definição de "homem". Pondo de parte perspectivas, acepções, contextos. Singela e objectivamente: "homem". Talvez assim pudesse aproximar o conceito da vida por intermédio do livro. Este como mediador: o dicionário como guia das estradas não que me sentisse perdida mas para nele tentar encontrar uma sinaléctica que indicasse uma actualização, auto-estradas, vias alternativas que tivessem soterrado a estrada de terra, íngreme porém pitoresca.

Atalhando a definição inicial de ser humano racional , mortal, topo da pirâmide evolutiva e sem considerações linguísticas feministas que me induzissem a discorrer sobre "a espécie humana" lá encontrei "ser humano do sexo masculino, na idade adulta; ser dotado de qualidades viris como coragem, força, vigor sexual, etc; marido ou amante; homem que apresenta os requisitos necessários para um empreendimento" (funcionalista!)

in Aurélio século XXI, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira

Como a era é tecnológica, os dedos rumaram à Wikipedia

"Homem é um ser humano do sexo masculino bípede da família dos primatas, pertencente à subespécie Homo sapiens sapiens.O termo menino é usual para uma criança humana do sexo masculino e o termo rapaz atribuído a um macho humano adolescente ou jovem adulto. O termo homem pode ser utilizado ainda para se referir ao ser humano de maneira geral, seja ele homem ou mulher. (...)

A condição de homem é normalmente vinculada ao período da vida após a juventude, pelo menos numa acepção física, durante o puberdade. Um menino é uma criança humana masculina. Para muitos, a palavra homem implica um determinado grau de maturidade e responsabilidade para as quais homens jovens, em especial não se sentem prontos; contudo, também podem sentir-se demasiado velhos para serem chamados de menino, por esta razão, muitos evitam usar o termo homem ou o menino para descrever um homem jovem e preferem termos mais coloquiais tais como rapaz e gajo."

Bem me parecia que, apesar dos viadutos, vias rápidas anunciadas em planos megalómanos auto-promocionais por entre muita pompa e ainda mais circunstância...a estrada de terra...continuava lá.

Corrompendo a citação: Não deixeis vir a mim as criancinhas!

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Ciprés


Ciprés.
(Agua estancada.)

Chopo
(Agua cristalina.)

Mimbre.
(Agua profunda.)

Corazón.
(Agua de pupila.)

Federico García Lorca, Ciprés

Mulheres de Atenas



Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Vivem pros seu maridos, orgulho e raça de Atenas
Quando amadas, se perfumam
Se banham com leite, se arrumam
Suas melenas
Quando fustigadas não choram
Se ajoelham, pedem, imploram
Mais duras penas
Cadenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Sofrem pros seus maridos, poder e força de Atenas
Quando eles embarcam, soldados
Elas tecem longos bordados
Mil quarentenas
E quando eles voltam sedentos
Querem arrancar violentos
Carícias plenas
Obscenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Despem-se pros maridos, bravos guerreiros de Atenas
Quando eles se entopem de vinho
Costumam buscar o carinho
De outras falenas
Mas no fim da noite, aos pedaços
Quase sempre voltam pros braços
De suas pequenas
Helenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Geram pros seus maridos os novos filhos de Atenas
Elas não têm gosto ou vontade
Nem defeito nem qualidade
Têm medo apenas
Não têm sonhos, só têm presságios
O seu homem, mares, naufrágios
Lindas sirenas
Morenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Temem por seus maridos, heróis e amantes de Atenas
As jovens viúvas marcadas
E as gestantes abandonadas
Não fazem cenas
Vestem-se de negro, se encolhem
Se conformam e se recolhem
Às suas novenas
Serenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Secam por seus maridos, orgulho e raça de Atenas

Chico Buarque - Augusto Boal, 1976
Imagem: Diego Rivera - The flower seller

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Envelhecer


Gosto das mulheres que envelhecem,
com a pressa das suas rugas, os cabelos
caídos pelos ombros negros do vestido,
o olhar que se perde na tristeza
dos reposteiros. Essas mulheres sentam-se
nos cantos das salas, olham para fora,
para o átrio que não vejo, de onde estou,
embora adivinhe aí a presença de
outras mulheres, sentadas em bancos
de madeira, folheando revistas
baratas. As mulheres que envelhecem
sentem que as olho, que admiro os seus gestos
lentos, que amo o trabalho subterrâneo
do tempo nos seus seios. Por isso esperam
que o dia corra nesta sala sem luz,
evitam sair para a rua, e dizem baixo,
por vezes, essa elegia que só os seus lábios
podem cantar.

Nuno Júdice, Mulheres que envelhecem

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

percorrendo caminhos


"There are More Things" - (Excerto)
À memória de Howard P. Lovecraft

Naquela noite não dormi. Pela madrugada sonhei com uma gravura à maneira de Piranesi, que nunca tinha visto ou que tinha visto e esquecido, e que representava o labirinto. Era um anfiteatro de pedra, cercado de ciprestes e mais alto que as copas dos ciprestes. Em vez de portas e janelas, havia uma fileira infinita de frestas verticais e estreitas. Com uma lupa, eu procurava ver o minotauro. Por fim avistei-o. Era o monstro de um monstro; tinha menos de touro que de bisonte e, estendido por terra o corpo humano, parecia dormir e sonhar. Sonhar com quê ou com quem?

in O Livro de Areia ,1975,
Jorge Luis Borges

O Labirinto

É este o labirinto de Creta. É este o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro. É este o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações. É este o labirinto de Creta cujo centro foi o minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações, como María Kodama e eu nos perdemos. É este o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações, como María Kodama e eu nos perdemos naquela manhã e continuamos perdidos no tempo , esse outro labirinto.

in Atlas,1984
Jorge Luis Borges

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Espaço para sonhar ?


“O homem caminha durante dias pelo meio das árvores e pedras. Raramente o olho se detém sobre alguma coisa, e só quando a reconhece pelo sinal de outra coisa: uma pegada na areia indica a passagem do tigre; um pântano anuncia um veio de água; a flor do hibisco o fim do Inverno. Tudo o resto é mudo e inter cambiável; árvores e pedras são só o que são.

Finalmente a viagem conduz à cidade de Tamara. Entra-se nela por ruas pejadas de letreiros que sobressaem das paredes. Os olhos não vêem coisas mas sim figuras de coisas que significam outras coisas: a tenaz indica a casa do arranca-dentes; a garrafa a taverna; a alabarda o corpo da guarda; a balança romana a ervanária. Estátuas e escudos representam leões, golfinhos torres estrelas: sinal de que qualquer coisa – sabe-se lá o quê – tem por símbolo um leão, ou golfinho ou torre ou estrela.

Outros sinais avisam de que num local é proibido – entrara no beco com as carroças, urinar atrás do quiosque, pescar com cana do alto da ponte – e do que é lícito – dar de beber às zebras, jogar à bola, queimar os cadáveres dos parentes. (…) Se um edifício não tiver nenhum letreiro ou figura, a sua própria forma e o lugar que ocupa na ordem da cidade bastam para indicar a sua função: o palácio real, a prisão, a fundição da moeda, a escola de aritmética, o bordel.

Até as mercadorias que os vendedores põem em exposição nas bancas valem não por si próprias mas como sinais de outras coisas: a fita bordada para a fronte quer dizer elegância; a liteira dourada poder; os volumes de Averróis sapiência; a pulseira para o tornozelo volúpia. O olhar percorre as ruas como páginas escritas: a cidade diz tudo o que devemos pensar, faz-nos repetir o seu discurso, e enquanto julgamos visitar Tamara limitamo-nos a registar os nomes com que ela se define a si mesma e todas as suas partes.

Como realmente é a cidade sob este denso invólucro de sinais, o que ela contém ou oculta, o homem sai de Tamara sem tê-lo sabido. Fora dela espraia-se a terra vazia até ao horizonte, abre-se o céu por onde correm as nuvens. Na forma que o acaso e o vento dão às nuvens o homem fica logo absorvido a reconhecer figuras: um veleiro, uma mão, um elefante…”

in As Cidades Invisíveis, Italo Calvino, Teorema pp 17-18
Imagem. R. Magritte

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

teAuTRANo


Rio de Janeiro, 7 de Setembro de 1922 — São Paulo, 12 de Outubro de 2007

"Minha paixão é o teatro,exclusivamente. Minha programação para televisão é não fazer(...)Vejo uma mediocridade de televisão o tempo todo, enjoei.
Entrei numa loja em São Paulo, tinha uma senhora, até bem vestida, que veio tentar falar comigo (...)perguntei a ela se ela não ia ao teatro e ela disse, "Vou sempre, chego em casa, a primeira coisa que faço é ligar a televisão. Para teatro era a televisão. E não era uma mendiga de rua.

(...)Qual é a profissão estável? Qual a situação estável? Uma das coisas mais interessantes na vida é que estabilidade não existe. Você casa, pensa que agora realizou sua vida, e infelizmente o casamento acaba. Vai ser funcionário publico, muda o governo, e você é despedido. Qualquer profissão é instável. A vida é instável.

Todo mundo diz que eu soube construir muito bem a minha carreira. Um pensamento que nunca passou pela cabeça.(...)Fui sempre escolhendo pelo o que eu lia, gostava, o que achava necessário ser falado naquele momento. Cada momento é um critério diferente que a gente tem."

in Globo Online
Thiago Augusto- Entrevista originalmente publicada na Revista Centelha,

Imagem:paginas.terra.com.br

domingo, 14 de outubro de 2007

Diferença, humildade, preserverança e talento..merecido reconhecimento. Que seja duradouro!


Paul Potts:"I keep waiting for someone to pinch me and say 'Wake up, Paul, it's time for work - you're late again'. I feel like I'm on a rollercoaster - a white knuckle ride into the unknown. And I don't want to get off!"


"Britain's Got Talent winner Paul Potts has spent most of his life feeling 'insignificant'. Bullied at school for being 'different', he realised growing up that he had one true friend and that was his voice. Singing was his escape. He was able to lose himself in his own little world - the vicious words of his tormentors replaced by hauntingly beautiful lyrics and melodies that lifted his heart and spirit. It was a love, a passion, a lifeline that would follow Paul into adulthood and help him through many more periods of adversity.(...)

Born just outside Bristol on October 13, 1970, to bus driver Roland and his wife Yvonne, a supermarket cashier, Paul - who's one of four children
- was singing almost from the moment he could talk.(...)

By the time he reached 11, he was part of one of the best church choirs in Bristol. But it was when he hit 16 that his love of opera took hold. "I bought a cheap recording of Carreras," he recalls. "It was the first time I had heard Che Gelida Manina (Your Tiny Hand Is Frozen) and I was so moved by it. To this day La Boheme remains my favourite opera."

Although Paul has performed at amateur level, most notably with Bath Opera, his chronic lack of self esteem and fear of rejection always prevented him from trying to make it professionally. " As I saw it, if I never asked - never put myself out there - then I'd never get told "No",'says Paul. "It was safer that way."

So instead, he carried on with his day jobs - which have included stacking shelves in a supermarket and, most recently and famously, selling mobile phones, where he was told by one of his superiors that he was a 'natural salesman'. "But I knew I wasn't," says Paul.(...)

In 2000, Paul used savings and a bit of money he'd won on a quiz show to attend a three-month summer school in Italy, where he learned the language.(...)In 2003, he suffered a burst appendix. While undergoing treatment for this, doctors discovered a benign tumour on his adrenal gland. It was successfully removed but while he was recovering, he was knocked off his bike and broke his collarbone. "Of all the health problems I'd been through, breaking my collar bone was the most painful and it took months to recover," says Paul. " I got very, very low and for once, singing was the last thing on my mind."

And he might have given up forever, had it not been for Britain's Got Talent - the talent show for today's generation.(...)Paul strolled awkwardly - almost apologetically - onto the Cardiff stage for his first Britain’s Got Talent audition a week before that final, in his now infamous £35 Tesco suit, and announced to Simon and fellow judges that he was going to sing opera. (..)

"A humble bloke who's not even aware of his amazing gift - Paul
Potts is a true star" wrote one.

"It has changed my whole life. I used to feel so small and insignificant.
But now I know I am someone - I am Paul Potts and this is what I do,"
smiles Paul.
But don't worry - there's no danger of him going all starry and getting above himself! "I am not going to change - although I might invest in some nicer suits! But whatever happens, I'm keeping that Tesco one. It's a reminder of where I was and where I attempt to remain - except in better clothes!"

Paul also hopes to get his teeth done. "I don't think I'd suit one of those dazzling Hollywood smiles, but I'd like to get the cap sorted as I'm very conscious about it when I sing." Other plans for the £100,000 prize money include taking proud wife Julie-Ann, 27, who he wed four years ago, on safari - and, fingers crossed, starting a family.

"It's something we couldn't afford to think about before," explains Paul, who lives with Julie-Ann in a modest two bedroomed house in Port Talbot, south Wales. "Now we can and that would complete things. (...)Finally, I am going to be doing what I've always felt I was put here to do - something I love and that gives me so much joy".

from http://www.paulpottsuk.com/article/biography

"The Kingdom"


Aproveitando o tempo livre compulsivo - há algo de paradoxal nesta frase - fui ao cinema em "horário de expediente". O filme que me escolheu foi "O Reino" e, pelo menos durante as primeiras imagens, senti-me uma privilegiada. Dei por mim a pensar que aquela síntese retrospectiva poderia ter sido usada num documentário filmado por Michael Mann. Mais tarde, li que havia sido produzido por ele.

Muitos aprenderão mais sobre a emergência dos estados árabes e a luta pelo controlo do petróleo naqueles breves dez (?) minutos do que a ler volumosos compêndios de história. A intriga? A mensagem do filme? Inicialmente parecia-me mais um panegírico do FBI, um louvor às agências de investigação americanas e à sua industriosa acção reparadora..quer lha tenham solicitado, quer não. Passível de interpretações diversas..de denunciador a laudatório para os "justiceiros" ou "cavaleiros do apocalipse" nas limitações impostas à equipa e na mensagem que já nos parece trivial e piegas mas que esquecemos quando apelam ao fervor nacionalista contra o inimigo. A consideração que, do outro lado da barricada, há seres ... humanos... como nós!

* * * Jamie Foxx :)

sábado, 13 de outubro de 2007

Com Palavras



Com palavras me ergo em cada dia!
Com palavras lavo, nas manhãs, o rosto
e saio para a rua.
Com palavras - inaudíveis - grito
para rasgar os risos que nos cercam.

Ah!, de palavras estamos todos cheios.
Possuímos arquivos, sabemo-las de cor
em quatro ou cinco línguas.
Tomamo-las à noite em comprimidos
para dormir o cansaço.

As palavras embrulham-se na língua.
As mais puras transformam-se, violáceas,
roxas de silêncio. De que servem
asfixiadas em saliva, prisioneiras?

Possuímos, das palavras, as mais belas;
as que seivam o amor, a liberdade...
Engulo-as perguntando-me se um dia
as poderei navegar; se alguma vez
dilatarei o pulmão que as encerra.

Atravessa-nos um rio de palavras:
Com elas eu me deito, me levanto,
e faltam-me palavras para contar...

Com Palavras, Egito Gonçalves
Imagem: The Art of Conversation (1950) Magritte, René

Discursos de contrapoder ou de "ai que saudades do poder"



..E ainda não tinha eu lido a notícia que reproduzia o discurso do filho...sem dúvida que a analogia bélica...fica "a matar" num "solo sagrado" ao qual os peregrinos se deslocam com um espírito de sacrifício, esforço e despojamento.
Uma aposta que a Bíblia do filho é "O Príncipe" - já citado no post anterior ou o "Mein Kampf"? Influências paternas!!

12.29 Lusa in Publico.pt"O cardeal Tarcisio Bertone, Secretário de Estado do Vaticano, apelou hoje à rebelião dos cristãos face aos pretensos senhores destes tempos -acham-se no mundo da cultura e da arte, da economia e da política, da ciência e da informação- que exigem e estão prontos a comprar, se não mesmo a impor, o silêncio dos cristãos invocando imperativos de uma sociedade aberta' (esqueceu-se de algum domínio da vida social? ah! as forças armadas..mas redimiu-se já a seguir!) E também, perante os que, "em nome de uma sociedade tolerante e respeitosa, impõem como único valor comum a negação de todo e qualquer valor real e permanentemente válido". (este homem percebe alguma coisa de filosofia/sociologia/antropologia? os valores são idealidades, abstractos e mutáveis! Os dogmas são imutáveis..alguém o inscreva num Centro de Novas Oportunidades, vulgo CNO!!)

"Face a tais pretensões, o mínimo que podemos fazer é rebelar-nos(pergunto-me qual seria, em seu entender o máximo..inverter a situação romanos/cristãos..é do local..Roma..e tal ..andou a rever o Gladiador) com a mesma audácia dos apóstolos perante idêntica pretensão dos senhores daquele tempo - (diferentes tempos, diferentes métodos, distintas práticas de audácia, não? "mudam-se os tempos..." este definitivamente nunca leu Camões)

'Não podemos calar o que vimos e ouvimos".(não sei por que razão mantiveram o suposto segredo e a Lúcia de boca fechada e olhos escondidos em óculos de fundos de garrafa! ..além de que os sentidos são enganadores..ele ainda vai pela tese empirista..ts ts ts)

'A vitória depende essencialmente do talento, da habilidade, do valor dos que escrevem nos jornais, dos que falam nas reuniões, dos que têm um papel mais visível e seria suficiente animar e aplaudir estes chefes como se anima e aplaude os jogadores no estádio' ..ou como se faz o beija-mão..ou como se outorga o chefe máximo de uma hierarquia autocrática..não me lembro de ter votado em candidadtos a Papa ..de Santo Padre!!)

"Não existe erro mais temível e desastroso!", disse o "número dois" do Vaticano, acrescentando que "se os soldados algum dia chegassem a pensar que a vitória já não dependia deles, mas somente do Estado-Maior, esse exército marcharia de desastre em desastre". Assim, é fundamental, " para evitar tal desastre no que se refere ao renascimento do homem para uma sociedade nova, o esforço até o mais insignificante, dos servos mais humildes, dos servos de um só talento". (Lá se vai a ideia de que somos todos iguais aos olhos do Pai..afinal há uns humildes, mono-talentosos ou afortunados e há esforços insignificantes..jogar póquer com este tipo deve ser giro!! ele aposta até a tia!!)

"Fátima é conversão, emenda de vida, deixar de pecar, reparar a Deus ofendido no irmão". (ora bem..o Filho sentiu-se abandonado pelo Pai..agora temos o irmão ..ou a irmã Rússia..que até já tolera a religião e já permite a prática religiosa, quer católica, quer ortodoxa..o que este não quer é a diversidade! Vamos converter ou seja..não impor um areligião ..mas "converter"..derramar sobre os "bárbaros, infiéis e impuros" a nossa suposta e altiva cristandade e pureza!! Medieval!!)

E dirigindo-se aos fiéis,( aquelas farpas eram para os ímpios) lembrou que, "sem negar o valor dos sacrifícios e penitências voluntárias", (boa!! ou seja..Filipinas e rituais de expiação, purificação, penitência, apedrejamento, crucificação..só ficam bem e este subscreve!!) a penitência de Fátima é a aceitação submissa da vontade de Deus"

(méééééééééééééé...esta vontade é-nos veiculada e "explicada" por estes altos dignitários..com base em depoimentos de crianças esfaimadas que ouviram, em português, um discurso de horas sobre a Rússia e sua necessidade de conversão ..senão males terríveis adviriam à Humanidade. Uma informação desta importância é "selada" após comprovação,pela Igreja, da autenticidade e autoridade desta mensagem. A mensagem e circunstâncias não são susceptíveis de discussão, crítica ou contra-argumentação; é uma mensagem clara e unívoca.
Este Bretone devia estar na presidência das Nações Unidas..ou no ponto mais alto da torre de Babel..ainda que a Divindade a quisesse destruir e confundir a humanidade ..tinha esta "personagem" como tradutor..a desfazer o que Deus fez! Este homem é o Senhor!!)

Este discurso é dos mais insidiosos, xenófobos, fundamentalistas e arrogantes dos últimos tempos.. e quem não se sentir envergonhado..não é filho do Criador. Se não tivesse devolvido o cartão de membro, costuraria uma burka ..e amanhã apresentar-me-ia na missa do meio-dia!!

Diferenças / semelhanças com as imagens?

Estado laico..ou talvez não


Uma nova Igreja foi inaugurada ontem em Fátima baptizada "Santíssima Trindade".Se da hierarquia eclesiástica não estive presente a figura do Pai enviando, em seu lugar, um filho imbuído de um espírito "santo", já o poder temporal teve o pai "in loco", o filho anfitrião em Belém e o espírito mediático a reportar e difundir todo o evento.
Se as ligações divino / temporal me incomodam, assistir a reportagens acerca da coerência ou coincidência da mensagem Mariana com a revolução russa, deixa-me num arrebol!Tivesse o "segredo" sido desvendado "a priori" e o curso dos acontecimentos históricos,na já então União Soviética, teria sido diverso? A ideologia marxista-leninista ter-se-ia mostrado tolerante para com princípios, cultos e ícones religiosos? Teria havido lugar a um estado plural e democrático? Os Mencheviques continuariam no poder e o ideário da revolução de Fevereiro triunfaria aproximando o Oriente do Ocidente em termos ideológicos e políticos? E Por que optaria a Madonna por uma condenação tão veemente a um dos blocos ideológicos? E ..por que não usar Ela do seu poder e libertar os seus filhos oprimidos? Porquê este delegar de competências? Porquê o Seu silêncio ou ausência de protagonismo / evidência actuais? Insondáveis os desígnios metafísicos!

"Só falta falar agora dos principados eclesiásticos(..); obtêm-se por virtù ou por sorte e conservam-se sem uma coisa nem outra, porque se mantêm graças à grande antiguidade das instituições religiosas, que são tão fortes e de tal natureza que os seus príncipes conservam os seus lugares, seja qual for o modo como se comportam e vivam. Têm territórios e não os defendem, têm súbditos e não os governam.E, embora os seus estados não sejam defendidos, ninguém se apodera deles;e, embora os seus súbditos não sejam governados, não se importam com isso: não pensam nem podem subtrair-se ao seu próprio governo. Portanto, só estes principados são seguros e felizes. (..)
Contudo, se alguém me perguntasse, com insistência, como se explica que a Igreja se tenha tornado tão grande e tão poderosa no campo temporal (..) e embora a explicação me pareça evidente, não me escusaria a responder.
Antes do rei Carlos entrar em Itália, o país estava sob o domínio do papa, dos Venezianos, do rei de Nápoles, do duque de Milão e dos Florentinos. Estes potentados deviam evitar, principalmente, duas coisas: que algum estrangeiro entrasse em Itália para aí fazer guerra e que algum deles ocupasse mais território do que tinha. Aqueles que causavam mais apreensão eram o papa e os Venezianos. Para sofrear o papa, serviam-se dos barões de Roma - Orsínis e Colonas - empunhando as armas na sua presença e tornando o papado mais fraco e menos poderoso.(...)

Depois surgiu Alexandre VI o qual mostrou bem quanto um papa se podia fazer valer pelo dinheiro ou pela força, através do duque de Valentinois e por ocasião da vinda dos Franceses a Itália.(...)Embora a sua intenção não fosse o benefício da Igreja mas sim o do seu filho, o que fez redundou a favor daquela instituição, pois por morte do papa e do seu filho foi a Igreja que herdou o resultado das suas penas e trabalhos. Júlio II que se sucedeu, achou já a Igreja muito poderosa, senhora de toda a Romanha, com os barões de Roma todos arruinados e as facções abolidas em consequência das muitas perseguições de Alexandre. Encontrou também o caminho aberto para amealhar dinheiro, o que nunca fora praticado antes de Alexandre. O papa Júlio não só continuou tudo isso como lhe deu maior amplitude, metendo-se-lhe na cabeça apoderar-se de Bolonha, expulsar os Franceses de Itália. Todas estas aventuras foram coroadas de êxito e são tanto de louvar quanto é certo que as empreendeu para engrandecer a Igreja e não qualquer particular. (..)
Mas agora Sua Santidade o Papa Leão encontrou um papado muito poderoso e só é de esperar que, se os outros o engrandeceram pelas armas, ele o torne muito maior e digno de veneração pela sua bondade e outras virtudes infinitas".

in O Príncipe, De Principatibus eclesiasticis (Dos Principados Eclesiásticos), por Maquiavel

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

em memória de todos os massacres

Fluxo de consciência

(...)
"estou a adiantar-me, doutor, eu sei que sim, agora tenho mesmo a certeza porque nem o vejo a tirar notas, quererá deixar-me terminar para depois ditar-me uma sentença.
Sabe o que custa cumprir uma sentença
(...)é que, confesso ainda, me faz aflição você não dizer nada, tinham-me avisado do tempo

Acabou-se o tempo

mas não da sua postura, esse silêncio qu enão sei como entender, ou é extraordinariamente inteligente e oberva-me de um patamar que não, nuncahei-de vislumbrar, ou não conseguiu ouvir nada do que eu digo, ou não quer ouvir nada do que eu digo, assim que o qu edigo foge à sua grelha de análise, está talvez furioso desagradavelmente surpreendido, e como não sabe o que dizer-me não diz nada
(...)Passei pois dos quarenta, fiz tudo o que o meu pai exigiu, o que penso espero o deixe orgulhoso, tenho filhos, esposa, emprego de reputação, profissão liberal, sou dos melhores no meu ramo, mas não consigo deixar de pensar, doutor, que a meio da vida já fiz o que tinha a fazer, o que era suposto fazer

Pode morrer em paz pai
que faço agora com o que me resta, ninguém me preparou, daí talvez buscar respostas, haverá resposta concludente, como me justifico à menina que foge do pai, o homem que consegui voltasse tranquilo a casa, a abrir garrafões e a sorrir, apesar de desagradavelmente surpreendido por lhe ter baralhado diagnósticos há ainda uma outra coisa que gostaria que escutasse

Pois é
Imagino que acabou o tempo
É
Tem uma vista lindíssima, os barquinhos no rio
Pois é
Serei para si ainda um fulano. Ou consegue ver-me."

in A casa quieta, Rodrigo Guedes de Carvalho