A gratidão é a mais agradável das virtudes; não é, no entanto, a mais fácil. Por que seria? (...)
A gratidão não nos tira nada, ela é dom em troca, mas sem perda e quase sem objeto. A gratidão nada tem a dar, além do prazer de ter recebido. (...) Generosidade da gratidão… se a gratidão nos falta com tanta frequência, não será, de novo, mais por incapacidade de dar do que de receber, mais por egoísmo do que por insensibilidade? Agradecer é dar; ser grato é dividir . O egoísta pode regozijar-se em receber. Mas seu regozijo é seu bem, que ele guarda só para si. Ou, se o mostra, é mais para fazer invejosos do que felizes: ele exibe seu prazer, mas é o prazer dele. Já esqueceu que outros têm algo a ver com isso. Que importância têm os outros? Por isso o egoísta é ingrato: não porque não goste de receber, mas porque não gosta de reconhecer o que deve a outrem, e a gratidão é esse reconhecimento, porque não gosta de retribuir, e a gratidão, de facto, retribui com o agradecimento, porque não gosta de partilhar, porque não gosta de dar. O que a gratidão dá? Ela dá a si mesma . É prazer somado ao prazer, felicidade somada à felicidade, gratidão somada à generosidade… O egoísta é incapaz disso, pois só conhece suas próprias satisfações, sua própria felicidade, pelas quais zela como um avaro por seu cofre. A ingratidão não é incapacidade de receber, mas incapacidade de retribuir – sob a forma de alegria, sob a forma de amor – um pouco da alegria recebida ou sentida. É por isso que a ingratidão é tão frequente. Nós absorvemos a alegria como outros absorvem a luz: buraco negro do egoísmo.
Essa gratidão é gratuita, por não se poder exigir dela, ou para ela, nenhum pagamento. O reconhecimento talvez seja um dever, em todo caso uma virtude, mas, observa Rousseau, não poderia ser um direito exigi-lo ou exigir o que quer que seja em seu nome.
Não confundamos gratidão com retribuição de cortesias. Digamos apenas que a gratidão é levada a agir, por sua vez, em favor de quem a suscita, não decerto para trocar um obséquio por outro (não seria mais gratidão, e sim troca): “O reconhecimento ou gratidão é o desejo ou o zelo de amor pelo qual nos esforçamos em fazer o bem àquele que o fez a nós, em virtude de um sentimento semelhante de amor por nós.” É aí que passamos da gratidão simplesmente afectiva, como dirá Kant, à gratidão activa: da alegria retribuída à acção retribuída. (...) O certo é que a gratidão se distingue da ingratidão precisamente por saber ver no outro (e não, como o amor-próprio, unicamente em si mesmo) a causa de sua alegria – pelo que a ingratidão é ruim, pelo que a gratidão é boa, e torna bom.
A força do amor-próprio explica assim a raridade ou a dificuldade (“tudo o que é belo é tão difícil quanto raro…”) da gratidão: cada um, do amor recebido, prefere tirar glória, que é amor a si, em vez de reconhecimento, que é amor ao outro. “O orgulho não quer dever”, escreve La Rochefoucauld, “e o amor-próprio não quer pagar”. Como não seria ele ingrato, se só sabe amar a si, admirar a si, celebrar a si?
Há humildade na gratidão, e a humildade é difícil. ´
Humildade de Bach, humildade de Mozart, tão diferentes uma da outra (o primeiro agradece, dá graças, com génio sem igual, o segundo, poder-se-ia dizer, é a própria graça…), mas ambas comoventes de gratidão feliz, de simplicidade verdadeira, de potência quase sobre-humana, com a serenidade, mesmo na angústia ou no sofrimento, de quem se sabe efeito, não princípio, e contido naquilo que canta, e que o faz ser, e que o arrebata… (...)… Sim, isso que podemos ler na Ética de Spinoza também ouvimos na música, e nas de Bach e de Mozart, parece-me, melhor do que em qualquer outra (em Haydn ouvem-se mais a polidez e a generosidade, em Beethoven a coragem, em Schubert a doçura, em Brahms a fidelidade…), e é o suficiente para dizer a que altura a gratidão se situa: virtude de ápice, e para os gigantes muito mais que para os anões.
A gratidão regozija-se com o que aconteceu, ou com o que é. “A vida do insensato”, dizia Epicuro, “é ingrata e inquieta: ela se volta toda para o futuro.”
Por isso eles vivem em vão, incapazes de se saciarem, de se satisfazerem, de serem felizes: eles não vivem, dispõem-se a viver, como dizia Séneca. (...)
A gratidão (charis) é essa alegria da memória. É o tempo reencontrado, se quisermos (“a gratidão do que foi”, diz Epicuro). (...) O reconhecimento é um conhecimento (ao passo que a esperança nada mais é que uma imaginação); é por aí que ela alcança a verdade, que é eterna, e a habita. Gratidão: desfrutar eternidade.
Não estou persuadido de que a gratidão seja um dever, como pensavam Kant e Rousseau. Mas o facto de ela ser uma virtude, isto é, uma excelência, é atestado pela evidente baixeza de quem é incapaz de gratidão, e atesta a mediocridade de nós todos, que carecemos dela! (...)
Pode ser até que esta às vezes se inverta naquela, a tal ponto o amor-próprio é susceptível: a ingratidão para com o benfeitor, escreve Kant, “é um vício na verdade extremamente detestável ao juízo de todos, embora o homem tenha tão má reputação sob esse aspecto, que ninguém considera inverosímil que seja possível fazer um inimigo mediante benefícios notáveis”. Grandeza da gratidão: pequenez do homem.
Sem contar que o próprio reconhecimento pode ser às vezes suspeito. La Rochefoucauld não via nele mais que interesse disfarçado, e Chamfort notava com razão que “há uma espécie de reconhecimento baixo”. É servilidade disfarçada, egoísmo disfarçado, esperança disfarçada. Só se agradece para se ter mais (diz-se “obrigado”, pensa-se “mais”!). Não é gratidão, é lisonja, obsequiosidade, mentira. Não é virtude, é vício. Virtude segunda, se não secundária, que cumpre manter em seu devido lugar: a justiça ou a boa-fé podem autorizar uma falta com a gratidão, mas não a gratidão uma falta com a justiça ou a boa-fé. Ele me salvou a vida: devo, por isso, impor-me um falso testemunho em seu favor e com isso condenar um inocente? Claro que não! Não esquecer não é ser ingrato, pelo que devemos a determinado indivíduo, o que devemos a todos os demais e a nós mesmos. Gratidão não é complacência. Gratidão não é corrupção.
A gratidão é alegria. Alegria somada a alegria. A gratidão é nisso o segredo da amizade, não pelo sentimento de uma dívida, pois nada se deve aos amigos, mas por superabundância de alegria comum, de alegria recíproca, de alegria partilhada.
A gratidão não nos tira nada, ela é dom em troca, mas sem perda e quase sem objeto. A gratidão nada tem a dar, além do prazer de ter recebido. (...) Generosidade da gratidão… se a gratidão nos falta com tanta frequência, não será, de novo, mais por incapacidade de dar do que de receber, mais por egoísmo do que por insensibilidade? Agradecer é dar; ser grato é dividir . O egoísta pode regozijar-se em receber. Mas seu regozijo é seu bem, que ele guarda só para si. Ou, se o mostra, é mais para fazer invejosos do que felizes: ele exibe seu prazer, mas é o prazer dele. Já esqueceu que outros têm algo a ver com isso. Que importância têm os outros? Por isso o egoísta é ingrato: não porque não goste de receber, mas porque não gosta de reconhecer o que deve a outrem, e a gratidão é esse reconhecimento, porque não gosta de retribuir, e a gratidão, de facto, retribui com o agradecimento, porque não gosta de partilhar, porque não gosta de dar. O que a gratidão dá? Ela dá a si mesma . É prazer somado ao prazer, felicidade somada à felicidade, gratidão somada à generosidade… O egoísta é incapaz disso, pois só conhece suas próprias satisfações, sua própria felicidade, pelas quais zela como um avaro por seu cofre. A ingratidão não é incapacidade de receber, mas incapacidade de retribuir – sob a forma de alegria, sob a forma de amor – um pouco da alegria recebida ou sentida. É por isso que a ingratidão é tão frequente. Nós absorvemos a alegria como outros absorvem a luz: buraco negro do egoísmo.
Essa gratidão é gratuita, por não se poder exigir dela, ou para ela, nenhum pagamento. O reconhecimento talvez seja um dever, em todo caso uma virtude, mas, observa Rousseau, não poderia ser um direito exigi-lo ou exigir o que quer que seja em seu nome.
Não confundamos gratidão com retribuição de cortesias. Digamos apenas que a gratidão é levada a agir, por sua vez, em favor de quem a suscita, não decerto para trocar um obséquio por outro (não seria mais gratidão, e sim troca): “O reconhecimento ou gratidão é o desejo ou o zelo de amor pelo qual nos esforçamos em fazer o bem àquele que o fez a nós, em virtude de um sentimento semelhante de amor por nós.” É aí que passamos da gratidão simplesmente afectiva, como dirá Kant, à gratidão activa: da alegria retribuída à acção retribuída. (...) O certo é que a gratidão se distingue da ingratidão precisamente por saber ver no outro (e não, como o amor-próprio, unicamente em si mesmo) a causa de sua alegria – pelo que a ingratidão é ruim, pelo que a gratidão é boa, e torna bom.
A força do amor-próprio explica assim a raridade ou a dificuldade (“tudo o que é belo é tão difícil quanto raro…”) da gratidão: cada um, do amor recebido, prefere tirar glória, que é amor a si, em vez de reconhecimento, que é amor ao outro. “O orgulho não quer dever”, escreve La Rochefoucauld, “e o amor-próprio não quer pagar”. Como não seria ele ingrato, se só sabe amar a si, admirar a si, celebrar a si?
Há humildade na gratidão, e a humildade é difícil. ´
Humildade de Bach, humildade de Mozart, tão diferentes uma da outra (o primeiro agradece, dá graças, com génio sem igual, o segundo, poder-se-ia dizer, é a própria graça…), mas ambas comoventes de gratidão feliz, de simplicidade verdadeira, de potência quase sobre-humana, com a serenidade, mesmo na angústia ou no sofrimento, de quem se sabe efeito, não princípio, e contido naquilo que canta, e que o faz ser, e que o arrebata… (...)… Sim, isso que podemos ler na Ética de Spinoza também ouvimos na música, e nas de Bach e de Mozart, parece-me, melhor do que em qualquer outra (em Haydn ouvem-se mais a polidez e a generosidade, em Beethoven a coragem, em Schubert a doçura, em Brahms a fidelidade…), e é o suficiente para dizer a que altura a gratidão se situa: virtude de ápice, e para os gigantes muito mais que para os anões.
A gratidão regozija-se com o que aconteceu, ou com o que é. “A vida do insensato”, dizia Epicuro, “é ingrata e inquieta: ela se volta toda para o futuro.”
Por isso eles vivem em vão, incapazes de se saciarem, de se satisfazerem, de serem felizes: eles não vivem, dispõem-se a viver, como dizia Séneca. (...)
A gratidão (charis) é essa alegria da memória. É o tempo reencontrado, se quisermos (“a gratidão do que foi”, diz Epicuro). (...) O reconhecimento é um conhecimento (ao passo que a esperança nada mais é que uma imaginação); é por aí que ela alcança a verdade, que é eterna, e a habita. Gratidão: desfrutar eternidade.
Não estou persuadido de que a gratidão seja um dever, como pensavam Kant e Rousseau. Mas o facto de ela ser uma virtude, isto é, uma excelência, é atestado pela evidente baixeza de quem é incapaz de gratidão, e atesta a mediocridade de nós todos, que carecemos dela! (...)
Pode ser até que esta às vezes se inverta naquela, a tal ponto o amor-próprio é susceptível: a ingratidão para com o benfeitor, escreve Kant, “é um vício na verdade extremamente detestável ao juízo de todos, embora o homem tenha tão má reputação sob esse aspecto, que ninguém considera inverosímil que seja possível fazer um inimigo mediante benefícios notáveis”. Grandeza da gratidão: pequenez do homem.
Sem contar que o próprio reconhecimento pode ser às vezes suspeito. La Rochefoucauld não via nele mais que interesse disfarçado, e Chamfort notava com razão que “há uma espécie de reconhecimento baixo”. É servilidade disfarçada, egoísmo disfarçado, esperança disfarçada. Só se agradece para se ter mais (diz-se “obrigado”, pensa-se “mais”!). Não é gratidão, é lisonja, obsequiosidade, mentira. Não é virtude, é vício. Virtude segunda, se não secundária, que cumpre manter em seu devido lugar: a justiça ou a boa-fé podem autorizar uma falta com a gratidão, mas não a gratidão uma falta com a justiça ou a boa-fé. Ele me salvou a vida: devo, por isso, impor-me um falso testemunho em seu favor e com isso condenar um inocente? Claro que não! Não esquecer não é ser ingrato, pelo que devemos a determinado indivíduo, o que devemos a todos os demais e a nós mesmos. Gratidão não é complacência. Gratidão não é corrupção.
A gratidão é alegria. Alegria somada a alegria. A gratidão é nisso o segredo da amizade, não pelo sentimento de uma dívida, pois nada se deve aos amigos, mas por superabundância de alegria comum, de alegria recíproca, de alegria partilhada.
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