"Convite para uma chávena de chá de jasmim"


sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Inequívocos Equívocos


Pouco saberei contar-te de Aglaura para além das coisas que os próprios habitantes da cidade repetem desde sempre: uma série de virtudes proverbiais, algum malicioso obséquio às regras.

Antigos observadores, que não há razão para não supor verdadeiros, atribuíram a Aglaura a sua duradoura provisão de qualidades, certamente comparando-as com as de outras cidades do seu tempo.

Nem a Aglaura que se diz nem a Aglaura que se vê devem ter mudado muito desde então, mas o que era excêntrico tornou-se habitual, estranheza o que se passava por norma, e as virtudes ou defeitos perderam excelência ou desonra num concerto de virtudes ou defeitos diferentemente distribuídos. Neste sentido nada do que se diz de Aglaura é verdade, embora dela se extraia uma imagem sólida e compacta da cidade, enquanto menor consistência alcançam os esparsos juízos que se possam extrair vivendo lá. E o resultado é este: a cidade que dizem tem muito do que é preciso para existir, enquanto acaba por existir menos a cidade que existe no seu lugar.

Portanto se quisesse descrever-te Aglaura atendo-me apenas ao que vi e experimentei em pessoa, deveria dizer-te que é uma cidade desbotada, sem carácter, posta ali ao deus-dará, indiferente. Mas nem mesmo isto seria verdade: a certas horas, em certos trechos de ruas, vemos abrir-se-nos à frente a suspeita de qualquer coisa inconfundível, rara, talvez até magnífica; queria contar-te o que é, mas tudo o que se tem dito de Aglaura até agora aprisiona as palavras e obriga-nos a redizer em vez de dizer.

Por isso os habitantes julgam sempre que habitam uma Aglaura que só cresce no nome de Aglaura e não se apercebem da Aglaura que cresce em terra. E até mesmo a mim, que desejaria manter distintas na memória as duas cidades, não me resta senão falar de uma, porque se perdeu a recordação da outra, por falta de palavras para a fixar.

in As Cidades Invisíveis, Italo Calvino

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