"Convite para uma chávena de chá de jasmim"


sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Os Mortos


Os mortos sentam-se à mesa
mas sem tocar na comida;
ora fartos, já não comem
Senão côdeas de infinito.

Quedam-se esquivos, longínquos,
como a escutar o estribilho
do silêncio que desliza
sobre a medula do frio.

Não desvendo, embora lisas,
suas frontes, onde a brisa
tece uma tênue grinalda
de flores que não se explicam.

Nos beirais a lua afia
seu florete de marfim.
(Sob as plumas da neblina,
os mortos estão sorrindo:

um sorriso que, tão tíbio,
não deixa sequer vestígio
de seu traço quebradiço
na concha azul do vazio.)

Quem serão estes assíduos
morros que não se extinguem?
De onde vêm? Por que retinem
sob o pó de meu olvido?

Que se revelem, definam
os motivos de sua vinda.
Ou então que me decifrem
seu desígnio: pergaminho.

Sei de mortos que partiram
quase vivos, entre lírios;
outros sei que, sibilinos,
furtaram-se a despedidas.

Lembro alguns, talvez meninos,
que se foram por equívoco;
e outros mais, algo esquecidos
que de si mesmos se iam.

Mas estes, a que família
de mortos pertenceriam?
A que clã, se não os sinto
visíveis, tampouco extintos?

Ou quem sabe não seriam
mortos de morte, mas sim
de vida: imagens em ruínas
na memória adormecidas.

Mas eles, em seu ladino
concílio, disfarçam, fingem
não me ouvir. E seu enigma
(
névoa) no ar oscila e brinca.

Os Mortos, Ivan Junqueira
Imagem: Cao Fei

Outro Testamento
Quando eu morrer deitem-me nu à cova
Como uma libra ou uma raiz,
Dêem a minha roupa a uma mulher nova
Para o amante que a não quis.
Façam coisas bonitas por minha alma:
Espalhem moedas, rosas, figos.
Dando-me terra dura e calma,
Cortem as unhas aos meus amigos.
Quando eu morrer mandem embora os lírios:
Vou nu, não quero que me vejam
Assim puro e conciso entre círios vergados.
As rosas sim; estão acostumadas
A bem cair no que desejam:
Sejam as rosas toleradas.
Mas não me levem os cravos ásperos e quentes
Que minha Mulher me trouxe:
Ficam para o seu cabelo de viúva,
Ali, em vez da minha mão;
Ali, naquela cara doce...
Ficam para irritar a turba
E eu existir, para analfabetos, nessa correcta irritação.
Quando eu morrer e for chegando ao cemitério,
Acima da rampa,
Mandem um coveiro sério
Verificar, campa por campa
(Mas é batendo devagarinho
Só três pancadas em cada tampa,
E um só coveiro seguro chega),
Se os mortos têm licor de ausência
(Como nas pipas de uma adega
Se bate o tampo, a ver o vinho):
Se os mortos têm licor de ausência
Para bebermos de cova a cova,
Naturalmente, como quem prova
Da lavra da própria paciência.
Quando eu morrer. . .
Eu morro lá!
Faço-me morto aqui, nu nas minhas palavras,
Pois quando me comovo até o osso é sonoro.
Minha casa de sons com o morador na lua,
Esqueleto que deixo em linhas trabalhado:
Minha morte civil será uma cena de rua;
Palavras, terras onde moro,
Nunca vos deixarei.
Mas quando eu morrer, só por geometria,
Largando a vertical, ferida do ar,
Façam, à portuguesa, uma alegria para todos;
Distraiam as mulheres, que poderiam chorar;
Dêem vinho, beijos, flores, figos a rodos,
E levem-me - só horizonte - para o mar.

Quando eu morrer, Vitorino Nemésio




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