"Convite para uma chávena de chá de jasmim"


sábado, 20 de outubro de 2007

O aparato e a aparência


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Arcaica e estratificada a certos níveis, a sociedade portuguesa oferece, por contraste, uma extraordinária mobilidade “psíquica”, ou antes, uma comum disponibilidade para que os indivíduos que a constituam ocupem nela as mais imprevistas funções. No curioso far-west em que nos convertemos – depois de séculos de clausura sociológica – a predisposição crónica do efeito de aparência eclipsa quase por complete a crítica e o contrapeso que a avaliação mais correcta das exigências da realidade e da capacidade para as satisfazer, importa. Em princípiotodo o português que saiba ler e escrever se acha apto para tudo, e o que é mais espantoso é que ninguém se espante com isso.

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É pena que Freud não nos tenha conhecido: teria descoberto, ao menos, no campo da pura vontade de aparecer, um povo em que se exemplifica o sublime triunfo do princípio do prazer sobre o princípio da realidade.Talvez não ficasse tão admirado se conhecesse, mesmo pela rama, uma das menos repressivas educações infantis que existem. Adulação permanente e espectacular da criança-rei (sobretudo o macho), porta aberta para as suas pulsões narcisistas e exibicionistas, ausência de perspectiva social positiva, salvo a que prolonga a afirmação egoísta de si, tais são os mais comuns reflexos da educação portuguesa, defesa natural de mães frustradas nela pelo genérico absentismo e irresponsabilidade paternos. A contrapartida desta realeza traduz-se numa indefinição do espaço humano que nada limita e define senão a vontade oposta. (…) A sociedade portuguesa não é a única que vive sob o modo de uma quase total exterioridade e em obediência ao pendor iresistível de ocupar nela o lugar que implica o mínimo de resistência e o máximo de promoção social segundo a norma do parecer, mas é certamente uma das mais perfeitas no género.

Eduardo Lourenço, in O Labirinto da Saudade, 1978
A 4 de Dezembro doutor "honoris causa" pela Universidade de Bolonha.

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