"Convite para uma chávena de chá de jasmim"


quarta-feira, 31 de outubro de 2007

O impostor inverosímil



Dou-lhe esse nome - Tom Castro - porque sob esse nome o conheceram nas ruas e nas casas de Talcahuano, de Santiago do Chile e de Valparaíso, por volta de 1850, e é justo que o assuma outra vez, agora que regressa a estas terras - pelo menos na qualidade de mero fantasma (...).

O registo de nascimento de Wapping chama-lhe Arthur Orton e regista-o no dia 7 de Junho de 1834. Sabemos que era filho de um carniceiro, que a sua infância conheceu a miséria insípida dos bairros miseráveis de Londres e que sentiu o apelo do mar. O facto não é insólito. Run away to sea, fugir para o mar é a rotura tradicional inglesa da autoridade dos pais, a iniciação heróica. A geografia recomenda-a e até a Escritura (Salmos, 107): Os que se fizeram ao mar nos seus navios, / para comerciarem nas grandes águas, / esses viram as obras do Senhor, e as suas maravilhas no alto mar. (...)


Era um homem de uma tranquila idiotice. Logicamente, teria podido (e devido) morrer de fome, mas a sua confusa jovialidade, o seu permanente sorriso e a sua infinita mansidão atraíram-lhe o favor de uma certa família Castro, cujo nome adoptou. (...)


Em Sidney conheceu um tal Bogle, um criado negro. (...) Tinha a solidez de uma obra de engenharia (...) e a súbita ideia genial. Orton viu-o numa arruinada esquina (...) ao criar alento para enfrentar a imaginária morte. Depois de o ter olhado longamente, ofereceu-lhe o braço e, assombrados, atravessaram os dois a rua inofensiva. Desde esse instante dum entardecer já defunto, um protectorado se estabeleceu: o do negro inseguro e monumental sobre o obeso pateta de Waping. Em Setembro de 1865, ambos leram num diário local um desolado aviso.


Em fins de Abril de 1854 naufragou nas águas do Atlântico o vapor Mermaid, procedente do Rio de Janeiro, com rumo a Liverpoool. Entre os que pereceram estava Roger Charles Tichborne. Lady Tichborne, horrorizada mãe de Roger, recusou-se a acreditar na sua morte e publicou desolados avisos nos jornais de mais vasta circulação. Um desses avisos caiu nas brandas mãos fúnebres de Bogle, que concebeu um plano genial.


Tichborne era um esbelto cavalheiro de ar concentrado, de traços agudos, tez morena, o cabelo grosso e lasso, os olhos vivos e a palavra de uma exactidão já incómoda; Orton era um parolo sem maneiras, de vasto abdómen, traços de uma infinita inexpressividade, cútis a atirar para sardenta, cabelo castanho encaracolado, olhos dorminhocos e a conversação ausente ou confusa. Bogle inventou que o primeiro dever de Orton era embarcar no primeiro vapor para a Europa e satisfazer a esperança de Lady Tichborne, declarando ser seu filho.


(...) Apresentou um Tichborne fofo, com um sorriso amável de imbecil, cabelo castanho e uma irrecuperável ignorância do idioma francês. Bogle sabia que um fac-símile perfeito do ansiado Roger Charles Tichborne era de impossível obtenção. Sabia também que todas as similitudes conseguidas não fariam mais do que destacar certas diferenças inevitáveis. Renunciou, portanto, a todas as parecenças. Intuiu que a enorme inépcia da pretensão seria uma prova convincente de não se tratar de uma fraude, que descobriria desse modo flagrante os traços mais simples da convicção. Não deve esquecer-se tão-pouco a colaboração omnipotente do tempo: catorze anos de hemisfério austral e de azar podem modificar um homem.


Em 16 de Janeiro de 1867 Roger Charles Tichborne anunciou-se (...) a mãe reconheceu o filho pródigo e abriu-lhe o seu abraço. (...) Lady Tichborne morreu em 1870 e os parentes apresentaram queixa contra Artur Orton por usurpação do estado civil. (...) Outras denúncias se seguiram (...)

Cento e noventa dias durou o processo. (...) Bogle foi implorar uma terceira iluminação pelas ruas de Londres. Não saberemos nunca se a encontrou (...) apanhou-o o terrível veículo que desde o fundo dos anos o perseguia. (...) Os cascos do cavalo famélico partiram-lhe o crânio.


Tom Castro era o fantasma de Tichborne, mas um pobre fantasma habitado pelo génio de Bogle. Quando lhe disseram que este morrera, aniquilou-se. Continuou a mentir mas com um entusiasmo escasso e contradições disparatadas. Era fácil prever o fim.


Em 27 de Fevereiro de 1874, Artur Orton, por alcunha Tom Castro, foi condenado a catorze ans de trabalhos forçados. Na prisão tornou-se querido; era o seu ofício. O seu comportamento exemplar valeu-lhe uma amnistia de quatro anos. Quando essa hospitalidade final o deixou - a da prisão - percorreu as ruas e os centros do Reino Unido, pronunciando pequenas conferências em que declarava a sua inocência ou afirmava a sua culpa. A sua modéstia e o anseio de agradar eram tão duradouros que em muitas noites começou por defender-se e acabou por confessar, sempre de acordo com as inclinações do público.

Morreu em 2 de Abril de 1898


in História Universal da Infâmia

Jorge Luís Borges


1 comentário:

Anónimo disse...

[url=http://achetercialisgenerique20mg.net/]cialis prix[/url] cialis france
[url=http://comprarcialisgenerico10mg.net/]cialis comprar[/url] cialis 20 mg.
[url=http://acquistarecialisgenerico10mg.net/]cialis[/url] acquistare cialis
[url=http://kaufencialisgenerika10mg.net/]kaufen cialis[/url] cialis kaufen deutschland